Artigo - Trabalho Infantil Doméstico: Bom para quem?


Por: SINAIT
Edição: SINAIT
16/02/2009



O SINAIT divulga o artigo Trabalho Infantil Doméstico: bom para quem? Da jornalista, Sandra Kiefer, sob a coordenação da ANDI, que trata do Decreto 6.481, em vigor desde setembro de 2008. O decreto proíbe que adolescentes menores de 18 anos trabalhem como domésticos.  Antes deste documento era legal a contratação – desde que registrada em carteira – de maiores de 16 anos e menores de 18 para exercerem serviços domésticos.


Trabalho Infantil Doméstico: bom para quem?


Sandra Kiefer, sob a coordenação da ANDI *


 Fica decretado que nenhuma menina ou adolescente brasileira menor de 18 anos terá seus dias de Gata Borralheira. Ela tem direito a já nascer Cinderela e a nunca precisar esfregar o chão na casa de parentes. Ela não vai mais se sujeitar a ser "quase da família" e a lavar um banheiro ou arrumar uma cozinha, em troca de uma cama e um prato de comida. Ela se nega a ganhar um trocado para vigiar o filho da vizinha ou para pajear primas invejosas. Ela não precisa mais ficar de olho no relógio, com medo de que sua carruagem vire abóbora e sua roupa de princesa volte a rasgar em farrapos, como num conto de fadas.


Desde 12 de setembro de 2008, está em vigor o Decreto 6.481, que proíbe que adolescentes menores de 18 anos trabalhem como domésticos. Antes do decreto, era legal a contratação – desde que registrada em carteira – de maiores de 16 anos e menores de 18 para exercerem serviços domésticos. "O decreto introduz um elemento importante ao incluir o trabalho infantil doméstico entre as piores formas de trabalho infantil. Ao fazer isso, reconhece que essa menina pobre está exposta a riscos de humilhação, abusos e maus-tratos. Antes os casos ficavam subnotificados como violência doméstica ou sexual", afirma Isa Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).


Dentre as 691 atividades econômicas da lista das "piores formas", apenas o trabalho infantil doméstico chamou a atenção de parte da sociedade brasileira. "Houve uma chiadeira muito grande, tanto na classe média, que em grande parte é usuária do trabalho dessas meninas, quanto nas classes de baixa renda, que paga para a filha da vizinha olhar o bebê enquanto os pais saem para trabalhar", compara Isa. Ela lembra que há diferenciação nos direitos trabalhistas mesmo entre as domésticas adultas que, em boa medida, trabalham sem carteira assinada no Brasil. "O agravante é que tudo o que envolve a casa é ininterrupto e elas ficam submetidas a uma jornada sem fim, sem folga, sem férias, sem descanso", completa.


Dentre as 691 atividades econômicas da lista das "piores formas", apenas o trabalho infantil doméstico chamou a atenção de parte da sociedade brasileira. 


Para quem não consegue enxergar a realidade das gatas borralheiras no país, basta ver o caso da menina L., de 12 anos, de Goiás, encontrada pela polícia amordaçada e amarrada em um apartamento de luxo, onde residia com os patrões, de Goiânia. Outro caso que despertou a comoção nacional foi o da menina Marielma, de apenas 11 anos, que trabalhava como babá em Belém do Pará. Ela foi morta a pancadas em dezembro de 2005, na casa dos patrões Roberta Sandreli Rolim e Ronivaldo Furtado. Roberta foi condenada pela co-autoria do assassinato de Marielma e recebeu a sentença de 38 anos de prisão em regime fechado, 30 por homicídio qualificado e mais oito por manter a criança em cárcere privado.


"Para chegar ao decreto, ouvimos muitas histórias das mães dessas meninas, que também começaram a vida como domésticas. Elas falaram da humilhação de apanhar na cara, de comer restos de comida e até de casos de estupros que ficam debaixo do tapete, por ocorrerem na intimidade do lar. Ninguém fica sabendo", alerta Elvira Cosendey, coordenadora do Fórum Estadual de Combate ao Trabalho Infantil de Minas Gerais. Ela informa que, mediante denúncia, será acionado o Conselho Tutelar e as partes serão chamadas a negociar. Dependendo da gravidade do caso, será instaurado inquérito contra o explorador via Ministério Público Estadual ou diretamente pelo Ministério Público do Trabalho. "Como as casas são invioláveis por direito constitucional, é preciso haver uma conscientização maior da sociedade no sentido de denunciar as ocorrências de trabalho infantil doméstico. Talvez a polêmica em torno do decreto possa levar a uma reflexão das pessoas que fazem essa exploração da mão-de-obra no Brasil", completa Elvira.


410 mil crianças e adolescentes trabalham como domésticas


As piores formas de trabalho infantil foram proibidas pelo Decreto Legislativo 178, de 14 de dezembro de 1999 e promulgadas pelo Decreto 3.597, de 12 de setembro de 2000. Apenas no Decreto 6.481, desse ano, foram descritas e listadas as piores formas definidas para o Brasil. Para que o empregador doméstico possa melhor entender a gravidade do texto legal, basta citar o fato de que o decreto, por exemplo, coloca o trabalho doméstico na mesma categoria da extração de madeira, da produção de carvão vegetal, da fabricação de fogos de artifício e do trabalho nas ruas. Entre os riscos ocupacionais citados no decreto para jovens que realizam trabalhos domésticos estão "esforços físicos intensos, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual, longas jornadas de trabalho, sobrecarga muscular", entre outros.


Entre os riscos ocupacionais citados no decreto para jovens que realizam trabalhos domésticos estão "esforços físicos intensos, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual, longas jornadas de trabalho, sobrecarga muscular", entre outros.


A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) já garante ao trabalhador adolescente entre 14 e 18 anos uma série de proteções especiais, entre elas a proibição do trabalho em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, e em horários e locais que impeçam a freqüência à escola. No entanto, existem ainda cerca de 410 mil crianças e adolescentes que trabalham como domésticas, o que equivale a 8% do trabalho infantil no Brasil, segundo dados atualizados em 2007 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com o decreto, a expectativa é de que haja uma retirada do mercado de 245 mil pessoas com idade entre 16 e 17 anos, sem contar o fato de que os menores de 16 já estavam proibidos de trabalhar pela antiga legislação.


Em maior ou menor grau, outras histórias podem ser flagradas nas casas de vizinhos e parentes. É o caso de Jocasta da Cruz, de 20 anos, malabarista e acrobata do Circo de Todo Mundo, em Belo Horizonte (MG), que já fez apresentações nos semáforos e hoje dá oficinas na entidade para outras crianças. Aos 11, era obrigada a equilibrar o tempo e a fazer malabarismos com sua infância para tomar conta de um garotinho de seis anos, apenas cinco anos mais novo que ela. "Era raro folga. Somente uma vez por mês. Nos fins de semana, eu dormia por lá mesmo. Às vezes, ficava cansada e perdia a paciência com o menino", admite ela, que passou a cuidar do filho da vizinha quando a mãe dela perdeu o emprego. Atualmente, ambas estão trabalhando na organização não-governamental.   


"O trabalho feito nas casas de família é tão ilegal quanto qualquer outro, mas parece menos ilegal porque os patrões, embora explorem esse trabalho, pensam que estão ajudando a família da criança dando o emprego, alimentando, vestindo e deixando estudar. Alguns ainda arranjam a justificativa hipócrita de que ela é filha de criação e, com isso, eximem-se de pagar o salário devido", critica Suzanna Sochaczewski, socióloga do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-econômicos (Dieese). "A criança não está pronta para trabalhar, tanto do ponto de vista físico quanto psicológico. Ela precisa ter tempo para brincar, para não fazer nada e fingir que é uma rainha", observa a especialista do Dieese. Ou, quem sabe, fingir-se de Cinderela. Mas nunca de Borralheira, pois o serviço doméstico, ao contrário do que parece, não é um trabalho leve.


 


                  * Sandra Kiefer foi diplomada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância como Jornalista Amiga da Criança em 2000. Hoje trabalha no jornal Estado de Minas como repórter de Economia.

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