Por Solange Nunes, com informações do Consultor Jurídico
Edição: Andrea Bochi
Em julgamento encerrado no dia 6 de agosto, no Plenário Virtual, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu repercussão geral no recurso extraordinário que defende que não é necessário provar a "coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção" para configurar o crime de trabalho escravo previsto no artigo nº149 do Código Penal (CP) brasileiro.
De acordo com os proponentes, para a configuração do crime "basta a submissão da vítima a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva ou a condições degradantes de trabalho, condutas alternativas previstas no tipo penal".
A sugestão de atribuir repercussão geral ao recurso extraordinário foi proposta pelo ministro Luiz Fux, presidente da Corte, e acompanhada por outros nove ministros. Antes de se aposentar, em julho deste ano, o ex-ministro Marco Aurélio Mello votou contra o parecer de Fux.
A decisão do STF é importante na medida que a definição do que seja trabalho escravo e se o crime pode ser enquadrado no Código Penal, em vez de ficar restrito às leis trabalhistas, é o centro da discussão travada há vários anos por entidades da área de Direitos Humanos, de um lado, e por representantes do agronegócio, de outro. Neste setor é onde se concentra o maior número de denúncias de ocorrência de trabalho escravo no país. Além disso, o entendimento do STF deverá ser seguido por todas as demais instâncias da Justiça.
De acordo com a Auditora-Fiscal do Trabalho Cláudia Ribeiro, que atuou durante oito anos no Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), a decisão do STF é pertinente. “O Código Penal no art. 149 define muito bem o que é trabalho escravo. Nos oito anos que passei no combate ao trabalho escravo, vivenciei todas essas situações. Vimos também situações em que com sutileza, o empregador mantinha os trabalhadores presos a correntes invisíveis no trabalho”.
Cláudia Ribeiro pondera ainda que a abrangência conquistada com a alteração do Código Penal veio corroborar a opinião de juristas, da Inspeção do Trabalho e Ministérios Públicos. “Só a Inspeção do Trabalho, com a sua expertise, adquirida ao longo dos anos, poderia identificar essas situações ‘in loco’”.
Segundo ela, o Trabalho Escravo tira do trabalhador direitos básicos como comida decente, respeito e liberdade de ir e vir. “Quando o trabalhador é tratado como ‘coisa’, como um objeto descartável, onde não tem um local adequado para dormir, instalações sanitárias decentes, entre outras indignidades, não podemos considerar isso como trabalho”.
Alega ainda que as formas degradantes de trabalho a que são submetidos parte dos trabalhadores brasileiros deve ser repudiada por toda a sociedade. “Tenho certeza que a Inspeção do Trabalho não desistirá de cumprir a sua função institucional! Combater o Trabalho Escravo é uma bandeira da qual nunca desistiremos!”
Conheça o caso
De acordo com denúncia feita em 2005 com base em fiscalização do ministério do Trabalho e Emprego nas Fazendas São Marcos I, II e III, no município de Abel Figueiredo/PA, foram aliciados 52 trabalhadores para executar serviços rurais em condição de trabalho degradante (art. 149 CP), tendo a sentença acolhido a pretensão em relação a 43 trabalhadores cujas rescisões constam dos autos do processo.
A fiscalização encontrou alojamentos dos trabalhadores, classificados como coletivos e precários, falta de água potável, de instalações sanitárias, (alguns) trabalhadores dormindo em redes fora do alojamento, falta de equipamentos de primeiros socorros etc.
"Embora cada caso deva ser examinado no seu histórico e na sua realidade, além dos aspectos sociais do problema, segundo as circunstâncias de tempo (duração), modo (intensidade e circunstâncias) e localização geográfica o trabalho rural, verbi gratia, tem sempre o desconforto típico da sua execução, quase sempre braçal , o trabalho em condições degradantes é aquele em que a violação aos direitos do trabalhador revela-se intensa e persistente, em cuja execução é submetido a constrangimentos econômicos e pessoais (morais) inaceitáveis, conclusão que não está autorizada pela prova produzida nos autos", escreve Fux em sua manifestação.
"A matéria aqui suscitada possui densidade constitucional suficiente para o reconhecimento da existência de repercussão geral, competindo a esta Suprema Corte decidir sobre quais seriam as condições necessárias para que se configure o delito de redução a condição análoga à de escravo, à luz das normas constitucionais referentes à dignidade da pessoa humana, aos valores sociais do trabalho, bem como aos objetivos fundamentais de construir uma sociedade livre, justa e solidária e de reduzir as desigualdades sociais e regionais", afirma o ministro.
Violência aos direitos humanos
A ocorrência de casos de trabalho escravo ainda hoje, para Fux, "revela a existência de numerosos e inaceitáveis casos de violação aos direitos humanos, especificamente no que se refere ao conjunto de trabalhadores rurais e urbanos brasileiros, geralmente apurados, in loco, por fiscalizações trabalhistas, em que se constata avassaladora realidade de autuações com as quais o Estado Democrático de Direito não deve demonstrar complacência".
Os dados compilados pelo presidente do STF mostram que quase 132 anos após a abolição da escravatura no Brasil, situações análogas ao trabalho escravo ainda são registradas.
Os dados do Radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Previdência, em 111 dos 267 estabelecimentos fiscalizados em 2019, houve a caracterização da existência dessa prática com 1.054 pessoas resgatadas em situações desse tipo. O levantamento aponta ainda que, em 2019, o número de denúncias aumentou, totalizando 1.213 em todo o país, enquanto em 2018 foram 1.127.
Além disso, o levantamento mostra que, entre 2003 e 2018, cerca de 45 mil trabalhadores foram resgatados e libertados do trabalho análogo à escravidão no Brasil. Segundo dados do Observatório Digital do Trabalho Escravo, isso significa uma média de pelo menos oito trabalhadores resgatados a cada dia. Nesse período, a maioria das vítimas era do sexo masculino e tinha entre 18 e 24 anos de idade. O perfil dos casos também comprova que o analfabetismo ou a baixa escolaridade tornam o indivíduo mais vulnerável a esse tipo de exploração: 31% eram analfabetos e 39% não haviam concluído sequer o 5º ano.
A necessidade de redução dessa estatística, diz Fux, se impõe também quando observado o cenário mundial, na medida em que busca conferir efetividade aos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, "com a qual o STF se alinha em esforço contínuo para a defesa da vida, da dignidade, da justiça e da sustentabilidade. É o que ocorre no presente caso, no qual se evidenciam questões voltadas à proteção ao trabalho decente (ODS 8), à redução das desigualdades (ODS 10) e à promoção da paz, da justiça e de instituições eficazes (ODS 16)".
"A escravidão moderna é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa reduzir alguém a condição análoga à de escravo", analisa o ministro.
De qualquer forma, não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. "Porque comuns na realidade rústica brasileira, somente justificam a condenação nos casos mais graves, nos quais efetivamente haja o rebaixamento do trabalhador na sua condição humana, em tarefas em cuja execução é submetido a constrangimentos econômicos e pessoais (morais) inaceitáveis", salienta o ministro.
Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade, conclui.