O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT), a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), a Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e no Serviço (Contracs) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) se somam ao conjunto da sociedade civil no clamor por justiça e reparação para Sônia Maria de Jesus.
Sônia é trabalhadora doméstica resgatada de trabalho doméstico escravo na residência dos senhores Ana Cristina Gayotto de Borba e Jorge Luiz de Borba, este desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. A vítima foi encontrada em ação fiscal do Grupo Especial de Fiscalização Móvel coordenada pela Auditoria-Fiscal do Trabalho, realizada em junho de 2023, em Florianópolis – Santa Catarina.
Por 40 anos, Sônia, mulher preta, com deficiência (surda), trabalhou na casa de Ana Cristina Gayotto de Borba e Jorge Luiz de Borba privada de dignidade. Provável vítima também de tráfico de pessoas, a trabalhadora, desde os 9 anos, exercia tarefas domésticas para o casal, mas não recebia salário, nem tinha outros direitos trabalhistas e até contatos com a sua família de origem eram dificultados. Embora o casal tenha alegado que Sônia era “como da família”, ela nunca teve o mesmo tratamento que Ana Cristina e Jorge Luiz dispensaram aos filhos biológicos. Não foi à escola, nunca teve apoio adequado a sua condição de deficiência, não comia à mesa com a pretensa “família”, não usufruía de viagens.
As entidades manifestam preocupação com as recentes decisões judiciais do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Superior Tribunal Federal (STF) que determinaram a divulgação do endereço da instituição onde Sônia se encontrava em proteção para que o casal, que responde a processo por prática de trabalho escravo, pudesse visitá-la e convencê-la a retornar ao ambiente doméstico de onde havia sido retirada. É como se a justiça entregasse aos agressores de mulheres o endereço da Casa-abrigo, que é um serviço sigiloso e de cuidado para as mulheres se restabelecerem da violência sofrida.
Embora provisórias, essas decisões representam imenso retrocesso para o combate ao trabalho análogo ao de escravo e ao enfrentamento à violência contra as mulheres brasileiras.
As decisões perpetuam as raízes da escravidão que vigoraram em nosso país por mais de trezentos anos. Fomentam a cultura do “era é da família”, “eu estava ajudando” que tanto roubou a vida e dignidade de milhões de meninas e mulheres pobres e negras retiradas de sua família para trabalharem nas “casas de famílias de bem” em troca da promessa de comida todos os dias e de estudo, e que as sujeitavam a humilhações, privação de liberdade, racismo, violência física e a estupros.
Flagrantemente as decisões violam a normativa internacional e nacional de proteção ao trabalho digno e de respeito às trabalhadoras domésticas, a exemplo da Convenção sobre Escravatura de 1926, da Convenção 189 da OIT de proteção ao trabalho doméstico digno, da Convenção Interamericana contra o Racismo, da Recomendação 33 da Cedaw/ONU que preconiza o acesso à justiça para as mulheres, da Convenção de Belém do Pará que garante às mulheres o direito a uma vida sem violência, da Lei Maria da Penha que repugna qualquer forma de violência praticada no ambiente doméstico e estabelece medidas protetivas de urgência para o agressor não ter contato com a vítima e, por fim, da Lei Complementar 150/2015 que também assegura um ambiente às trabalhadoras domésticas livre de violações à dignidade da pessoa humana.
As decisões também constituem uma ameaça a atuação dos Auditores-Fiscais do Trabalho e ao esforço dos sindicatos de trabalhadoras domésticas que desde a década de 1990 denunciam a existência do trabalho doméstico escravo e clamam pela colaboração do Poder Judiciário. Infelizmente, cumpre apontar que as decisões do STJ e STF são outros lamentáveis exemplos da leniência da justiça brasileira para com esse tipo de crime – de 2008 a 2019, apenas 4% dos acusados foram condenados pelo sistema judiciário por escravizar pessoas.
O retorno de Sônia à casa dos investigados pode interromper os processos de inclusão social, comunitária e educacional aos quais vinha se integrando. Ela estava aprendendo habilidades básicas, como Libras, compreender nomear a si ou às pessoas do dia a dia, e até pedir para ir ao banheiro ou sinalizar fome. E não saber essas habilidades é prova inequívoca do grave prejuízo que anos de escravidão trouxeram à vida da vítima. Voltar a conviver intramuros com os investigados que lhe cercearam a liberdade é violentar os direitos de Sônia novamente.
Sônia Maria de Jesus merece justiça e reparação. Clamamos que o STJ e STF revejam suas decisões à luz da normativa nacional e internacional e das lições do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, a fim de garantir para Sônia a todas as pessoas vítimas de trabalho escravo o direito ao trabalho decente e a uma vida sem violência perpetrada por conhecidos, pela comunidade ou pelo Estado.
Brasília, 15 de setembro de 2023.