2ª Turma do TST afasta prescrição em caso de trabalho doméstico em condição análoga à escravidão


Por: SINAIT
Edição: SINAIT
31/10/2023



Segundo o colegiado, o Estado não pode compactuar com a impunidade em razão da passagem do tempo


Com informações do Tribunal Superior do Trabalho


A Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho manteve a condenação de uma família de São Paulo (SP) que, por mais de 20 anos, manteve uma empregada doméstica em condições consideradas análogas à escravidão. Além de indenizações de R$ 350 mil por danos morais individuais e R$ 200 mil a título de indenização por dano moral coletivo, os patrões deverão pagar todos os direitos trabalhistas devidos desde 1998. Ao afastar a prescrição trabalhista estabelecida pelo juízo de primeiro grau, que restringia os pedidos aos cinco anos anteriores ao término do contrato, o colegiado ressaltou a imprescritibilidade do direito absoluto à não escravização.


A relatora, ministra Liana Chaib, observou que, nos casos envolvendo crime contra a humanidade e grave violação aos direitos fundamentais, a norma geral sobre a prescrição trabalhista deve ser interpretada sistematicamente. Segundo ela, na hipótese excepcional de submissão de trabalhador à condição análoga à de escravo, a restrição da liberdade moral e até mesmo física não lhe permite buscar a reparação de seus direitos. “A situação se agrava ainda mais quando ocorre em ambiente doméstico, em que a trabalhadora é mantida em situação de dependência e exploração, e, não raro, ludibriada pela justificativa falaciosa de que seria ‘como se fosse da família’”, ressaltou.


Imprescritível


De acordo com a relatora, a questão é tão relevante que a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para que esse crime seja imprescritível. “Embora as esferas penal e trabalhista não se confundam, o Estado não pode compactuar com a impunidade em razão da passagem do tempo, pois isso resultaria num salvo conduto ao explorador”, afirmou.


Com esse fundamento, a Turma declarou imprescritível a pretensão, e a trabalhadora deverá receber todos os direitos trabalhistas desde 1998, conforme parâmetros estabelecidos na decisão.


Denúncia


A ação, ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Defensoria Pública da União (DPU), questionava a prescrição aplicada pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT). Teve origem em denúncia repassada em junho de 2020 pelo então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de que, no endereço da família, uma trabalhadora idosa seria vítima de violência, maus tratos, tortura psíquica e exploração e estaria trancada no local, ferida.


Mais de 20 anos


De acordo com os depoimentos colhidos, inclusive o da vítima, ela havia começado a trabalhar para a mãe da atual patroa em 1998, sem registro na carteira de trabalho. A partir de 2011, passou a morar com a família e a receber irregularmente, chegando a ficar meses sem salário. Em 2015, a família se mudou para a casa onde ela foi resgatada. Segundo seu relato, ela não recebia refeições e seu último salário fora de R$ 300 reais.


Sem banheiro


Desde o início da pandemia, ela havia sido proibida de entrar na casa, onde ficava o banheiro. Uma testemunha contou que, na única vez em que ela saiu de casa para passear com os cães nesse período, foi agredida pelo patrão. Os vizinhos também relataram que, recentemente, ela havia sofrido uma queda e passara a noite gritando, pedindo ajuda aos patrões, que não a socorreram.


Caridade


Após ser resgatada, a idosa se recusou a ir para um abrigo estadual, por medo da covid-19 e porque não queria abandonar o cachorro da casa - “sua única referência afetiva e emocional”. Um vizinho então aceitou abrigá-la e ao animal em sua casa. Ela não tinha nenhuma condição de subsistência, contando apenas com a caridade dos vizinhos.


Local temporário


Em sua defesa, os patrões sustentaram que, entre 1998 e 2011, a trabalhadora havia prestado serviços como diarista em várias residências e, em 2011, perdeu sua casa numa enchente. Por isso, eles teriam oferecido um lugar para ela morar, sem prestar nenhum serviço. Segundo eles, o cômodo que a idosa ocupava nos fundos da casa não era uma residência, mas um “local temporário” para ela guardar seus pertences até ter onde morar.


Trabalho escravo


Com base em diversos depoimentos e nas provas colhidas, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região reconheceu as condições análogas ao trabalho escravo às quais a trabalhadora foi submetida. Além de abusos psicológicos, desrespeito moral e abandono.  


Transgressão à dignidade


Quanto à caracterização do trabalho em condição análoga à de escravidão, a ministra observou que sua classificação penal abarca não apenas o trabalho forçado com privação da liberdade, mas também a sujeição a jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho. “O ilícito penal parte do conceito de trabalho escravo contemporâneo, definido como aquele em que o labor é executado em flagrante transgressão à dignidade humana”, assinalou.


Provas


No caso, a relatora ressaltou que o TRT, após exaustiva apreciação das provas, concluiu que este era o caso da trabalhadora, privada de salários e das mínimas condições de higiene, saúde e alimentação não somente depois de 2017, como alegavam os patrões. Os fatos e as provas que levaram a essa conclusão não podem ser reexaminados pelo TST (Súmula 126).


Dano coletivo


Em relação ao valor da indenização por dano moral coletivo, a ministra explicou que ela tem caráter meramente punitivo-pedagógico, porque a violação de direitos fundamentais pelo trabalho escravo é irreparável monetariamente. Assim, deve-se levar em conta a capacidade econômica dos ofensores - que, no caso, obtiveram o benefício da justiça gratuita. Por isso a condenação, apenas nesse ponto, foi reduzida de R$ 300 mil para R$ 200 mil.


A decisão foi unânime.


Processo: RRAg-1000612-76.2020.5.02.0053

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