PGR defende que trabalhadora escravizada seja novamente afastada do patrão desembargador


Por: SINAIT
Edição: SINAIT
10/11/2023



Parquet aponta ilegalidade da decisão que permitiu retomada do convívio entre casal investigado e trabalhadora resgatada. Caso ocorreu em Santa Catarina 


Por Dâmares Vaz, com informações do Ministério Público Federal.
Edição: Andrea Bochi


Em manifestação apresentada em habeas corpus proposto pela Defensoria Pública da União, a Procuradoria-Geral da República (PGR) defendeu que Sônia Maria de Jesus, a mulher resgatada da casa de um desembargador de Santa Catarina por suspeita de ter sido submetida a trabalho escravo por 40 anos, seja novamente afastada dos investigados.


A trabalhadora foi retirada em junho de 2023 da residência do magistrado e levada a uma entidade de apoio, mas retornou ao imóvel dois meses depois, graças a um ato do relator do caso no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A decisão foi depois confirmada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal André Mendonça. No entanto, para o subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, responsável pelo caso no Ministério Público Federal, a decisão deve ser revista, por tratar-se de medida teratológica (absurda), o que justifica a concessão do habeas corpus.


Por ocasião das decisões do STJ e do STF, que revitimizaram Sônia Maria de Jesus, o SINAIT, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), a Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e no Serviço (Contracs) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) se manifestaram por justiça e reparação para a trabalhadora. E apontaram que as decisões representam um imenso retrocesso no combate ao trabalho análogo ao de escravo e no enfrentamento da violência contra as mulheres brasileiras.


Em sua manifestação, a PGR informa o ministro André Mendonça que o avanço das investigações permitiu que, em 23 de outubro, o parquet denunciasse o desembargador Jorge Luiz Borba e a mulher, Ana Cristina Gayotto de Borba, pelo crime de redução de pessoa a condições análogas à de escravo previsto no Código Penal (art. 149, caput e §2º, inciso I). A ação está em andamento no STJ.


Ao defender que a vítima permaneça afastada do casal até a conclusão da apuração – conforme defendido pela Defensoria Pública –, a PGR destaca a existência de laudos técnicos que atestam a vulnerabilidade da mulher, que é surda e não conhece a linguagem de sinais, e a impossibilidade de sua manifestação de vontade de forma livre e inequívoca. Esse foi o critério considerado pela Justiça para aceitar pedido do casal e permitir o retorno de Sônia à residência da família. Para o MPF, no entanto, é perfeitamente razoável questionar a real vontade da vítima, dado o grave quadro de exploração a que foi submetida ao longo das últimas décadas.


“As circunstâncias são tão complexas que não soa exagero comparar a situação dela àquela pela qual passam as vítimas da ‘síndrome de Estocolmo’, estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor”, pontua o parquet.


Outro aspecto mencionado na manifestação decorre de relatos de familiares de Sônia que, autorizados pelo STJ a manter contato com ela, afirmaram ter tido dificuldades para viabilizar os encontros. O casal de ex-patrões também estaria dificultando a continuidade do atendimento que a mulher recebia no abrigo para onde foi levada. “Mesmo diante de determinações judiciais que preconizavam a observância da manutenção do atendimento que vinha sendo prestado à vítima, têm agido reiteradamente no sentido de inviabilizar o atendimento de Sônia, bem como de impedir a retomada de seu convívio social”, resume o parecer.


O documento também menciona as condições de saúde da vítima, que só foram verificadas após o resgate. É citada, por exemplo, a perda de dentes enquanto estava morando com os investigados. Ressalta ainda o teor de oito depoimentos prestados por ex-funcionários do casal, todos confirmando que Sônia prestava serviços habituais, sem o recebimento de salários. Uma condição que, no entendimento do MPF, justifica o seu afastamento dos investigados e desconstrói a alegação de que Sônia era tratada como uma pessoa da família.


“A paciente se viu retirada do local onde vinha recebendo acolhida, tratamento e educação formal pelo Estado, direitos que lhe foram sonegados por 40 anos. Recebia apoio médico e psicológico, em atendimento que se encontrava em curso, mas que foi interrompido de forma abrupta, quando ainda não havia sequer um diagnóstico concluído sobre sua saúde mental, sua capacidade cognitiva e, por consequência, sua própria capacidade civil”, enfatiza o subprocurador em um dos trechos do documento.


Violação


Além de pedir justiça e reparação para Sônia, o SINAIT, a Fenatrad, a Contracs e a CUT registraram que as decisões do STJ e do STF violam flagrantemente a normativa internacional e nacional de proteção ao trabalho digno e de respeito às trabalhadoras domésticas, a exemplo da Convenção sobre Escravatura de 1926;  da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de proteção ao trabalho doméstico digno; da Convenção Interamericana contra o Racismo; da Recomendação 33 da Cedaw/ONU que preconiza o acesso à justiça para as mulheres; da Convenção de Belém do Pará que garante às mulheres o direito a uma vida sem violência; da Lei Maria da Penha que penaliza qualquer forma de violência praticada no ambiente doméstico e estabelece medidas protetivas de urgência para o agressor não ter contato com a vítima, e, por fim, da Lei Complementar 150/2015, que assegura um ambiente às trabalhadoras domésticas livre de violações à dignidade da pessoa humana.


Para as entidades, as decisões constituem ainda uma ameaça à atuação dos Auditores-Fiscais do Trabalho e ao esforço dos sindicatos de trabalhadoras domésticas que desde a década de 1990 denunciam a existência do trabalho escravo doméstico e clamam pela colaboração do Poder Judiciário. Infelizmente, cumpre apontar que as decisões do STJ e STF são outros lamentáveis exemplos da leniência da justiça brasileira para com esse tipo de crime – de 2008 a 2019, apenas 4% dos acusados por reduzir pessoas a trabalho análogo ao de escravo foram condenados pelo sistema judiciário.


Cabimento do habeas corpus


Em relação ao andamento processual, a PGR é taxativa ao defender a procedência do pedido. Para o parquet, a ordem que permitiu a retomada do convívio entre investigados e vítima é absurda, o que justifica a apreciação do habeas corpus pela Suprema Corte mesmo que o caso não tenha esgotado a tramitação na STJ (restrição da súmula 691/STF). O MPF aponta flagrante ilegalidade, que vem permitindo a submissão da paciente/vítima a severas restrições em sua liberdade individual.

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