Auditor reúne em livro relatos de vidas transformadas pela inclusão no mercado de trabalho, por meio das cotas para PcDs


Por: SINAIT
Edição: SINAIT
13/11/2023



Rafael Faria Giguer, o autor, se define como o “primeiro Auditor-Fiscal do Trabalho e Engenheiro de Materiais que também é Astrólogo, Massoterapeuta, Cartomante, Hipnotista, Palestrante, Ator, Dançarino – e agora também Escritor. Ah, e deficiente visual, mas isso é só mais uma característica”


O Auditor-Fiscal do Trabalho Rafael Faria Giguer lança o livro “Vidas Além da Cota”, que apresenta ao leitor, por meio de relatos, o resultado transformador da inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, inclusão essa que é feita pela Auditoria-Fiscal do Trabalho.


“[O livro] poderia ser um simples compilado sobre a realidade e a rotina de um Auditor-Fiscal do Trabalho que fiscaliza o cumprimento de cotas destinadas a pessoas com deficiência em empresas de grande porte. Mas vai além, muito além. Publicados em redes sociais, os depoimentos reunidos na obra revelam pessoas, até então vistas como inferiores ou incapazes pelas suas deficiências (físicas, sensorial, intelectuais ou psicossociais), que encontraram no trabalho – e nas políticas destinadas à inclusão – a dignidade, direito universal de todo ser humano. A mudança se estende às empresas, aos colegas de trabalho, aos professores e à comunidade”, informa a apresentação do livro. A publicação pode ser adquirida aqui.


Na segunda parte do livro, Rafael compartilha o misto de sentimentos e o impacto profundo de resgates de trabalhadores (com deficiência ou não) submetidos a condições de trabalho análogo à escravidão. Os relatos trazidos em “Vidas Além da Cota” não pretendem apenas emocionar o leitor. São elementos propulsores para contínua transformação, inclusão, defesa dos direitos e da dignidade das pessoas com deficiência e combate ao trabalho análogo à escravidão.


Sobre o autor


Rafael Faria Giguer se define como o “primeiro Auditor-Fiscal do Trabalho e Engenheiro de Materiais que também é Astrólogo, Massoterapeuta, Cartomante, Hipnotista, Palestrante, Ator, Dançarino – e agora também Escritor. Ah, e deficiente visual, mas isso é só mais uma característica”.


Conheça a seguir parte da trajetória trilhada por Rafael – o relato é dele mesmo – até a Auditoria-Fiscal do Trabalho, carreira em que exerce atualmente o cargo de coordenador Nacional de Inclusão de Pessoas com Deficiência e Reabilitados pela Previdência, do Ministério do Trabalho e Emprego:


Rafael (nome verdadeiro) nasceu com uma doença degenerativa da retina, condição que faria com que gradualmente fosse perdendo a visão. Enxergava bem quando criança, mas a dificuldade de ler as revistas em quadrinhos levaram-no até um oftalmologista e veio o diagnóstico. Para ele, era só uma ida no oculista. Não sabia da reunião secreta que sua família fazia a portas fechadas, sem ele, na cozinha, para discutir o diagnóstico e o que fariam dali para frente. Dá para imaginar a mãe de Rafael tentando se tranquilizar, lembrando de um caso semelhante que havia na família: “Minha prima meio hippie também tem isso e nunca deixou de fazer nada, até está morando na Austrália, vendendo redes do Brasil”.


E assim a condição foi naturalizada, não sei se de forma forçada ou de fato internalizada pela família, mas adequadamente transmitida ao pequeno Rafael como algo totalmente natural: não havia tragédias nem obstáculos, era o que era: Rafael sabia que enxergava menos e tudo bem.


Todo ano, quando voltava de férias, precisava se sentar em uma classe mais à frente para ver o quadro-negro e tudo bem. Na oitava série (hoje nono ano), já não via o que estava escrito no quadro-negro e tudo bem, lia uma cópia do caderno dos colegas com letra grande. Passou a precisar de lente de aumento e impressões ampliadas e tudo bem. Mas esse “tudo bem” não duraria para sempre. Rafael, ao se formar no colégio, queria cursar Engenharia. Sua mãe tentou dissuadi-lo: “Faça Direito, tem um monte de livro acessível em Braille”. Mas Rafael, que nem lia Braile, queria Engenharia. Para ele era “tudo bem” e passou em uma Universidade Federal, em Engenharia de Materiais.


Na faculdade, no terceiro semestre, em uma disciplina de Química, veio o primeiro “não está tudo bem” para o Rafael. Seu Professor Satanás (nome fictício), não querendo passar trabalho por ter um aluno com baixa visão e, portanto, ser obrigado a pensar em adaptações no processo de ensino, optou pelo caminho mais rápido e cruel: “Não vou te falar sequer a cor da gota do tubo de ensaio, pois assim estaria te privilegiando em relação aos teus colegas de Engenharia para os quais não estou falando a cor da gota.


O Professor, de forma perversa, valia-se da máxima “todos são iguais perante a lei” para justificar sua atitude discriminatória. Rafael possuía o privilégio de pertencer a uma família estruturada, de classe média, e recebeu uma ótima educação formal. No entanto, nem assim conhecia seus direitos ou percebia a injustiça que sofria. Não sabia que, 84 anos antes de cursar aquela disciplina, em uma formatura de Direito, um tal de Rui Barbosa, um dos maiores juristas do Brasil, disse que “tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”.


Rafael não sabia que tinha, sim, o direito à educação e, seu Professor, o dever de promover adaptações razoáveis para possibilitar o aprendizado. Mesmo desconhecendo seus direitos, percebeu que algo não estava certo quando o Professor disse que tudo que faria por ele seria manter um bolsista monitorando por perto. Este bolsista, explicou o Professor, teria a única função de avaliar se Rafael estaria prestes a fazer algo que pudesse ferir os colegas – ênfase nos colegas. Apenas nesse caso o bolsista interviria, impedindo que os colegas se ferissem. Nesse aviso, havia uma ameaça implícita: continue na turma e você vai se ferir no laboratório por não enxergar direito e não faremos nada para impedir. Posteriormente, vendo que Rafael continuava frequentando as aulas, o mesmo Professor, apoiado pelo coordenador da disciplina foi mais direto quando disse: “Não posso te expulsar do curso, mas recomendo fortemente que desistas”.


Rafael desobedeceu ao Professor e não desistiu, sabe-se lá por que – talvez por medo de prestar novo vestibular e não passar, por birra ou porque quisesse ensinar algo ao Professor. Fato é que seguiu cursando Engenharia e ainda durante a graduação passou em um concurso público para a própria universidade em que estudava, para trabalhar, justamente, na implementação de um setor responsável por adaptar materiais para que alunos e servidores com deficiência pudessem estudar e trabalhar com adequadas condições de acessibilidade.


Poucos anos depois, a contragosto de alguns e para orgulho de outros, Rafael concluiu o curso de Engenharia de Materiais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e, com o diploma em mãos, buscou emprego na área em que tão arduamente se graduou. Então novas barreiras apareceram.


Desde criança, Rafael sabia que sua condição de perda visual era apenas mais uma de suas tantas características. Não foi novidade quando, na pré-adolescência, em uma conversa com sua mãe ansiosa, o oftalmologista disse que ele teria uma vida normal, só precisaria de adaptações para algumas coisas, mas, no geral, viveria tranquilamente.


Nas entrevistas de emprego, porém, era diferente. Parecia que a deficiência visual entrava na sala antes de Rafael e não importavam a eloquência, as boas notas e o conhecimento de línguas estrangeiras. Quando ela aparecia, a vaga de Engenheiro sumia.


Não deu, não conseguiu, e a carteira de trabalho de Rafael seguia em branco. Ainda bem que já havia passado em um concurso público de nível médio e constatado que, naquele momento, só conseguiria emprego dessa maneira. Em uma seleção por meio de prova de concurso, não haveria olhar de censura de um entrevistador que não o conhecia e que, de antemão, já presumia que ele seria incapaz. Na seleção eram só Rafael e a prova (exceto quando, depois de muito estudar, chegava no concurso e a falta de acessibilidade o prejudicava).


Foi nesse cenário, aceitando que se tornaria concurseiro, que Rafael conheceu uma atividade chamada Auditoria-Fiscal do Trabalho. Descobriu que os Auditores-Fiscais do Trabalho são as autoridades públicas responsáveis por fiscalizar as empresas e verificar as condições de trabalho dos empregados, desde condições de saúde e segurança até pagamento de salários e assinatura de CTPS. Quando necessário, os Auditores multam os infratores, interditam máquinas perigosas e determinam as regularizações devidas para reduzir as opressões decorrentes da disputa capital-trabalho. Também resgatam pessoas da condição de escravidão moderna, lutam contra o trabalho infantil e combatem discriminações nas relações de trabalho, bem como exigem a contratação de pessoas com deficiência por parte de grandes empresas.


Pronto! Rafael se apaixonou pelo cargo e decidiu que esse seria seu destino. Estudaria até passar, nem que levasse uma década (levou dez meses, mas de muita dedicação). No ano seguinte, em agosto de 2010, entrava com sua bengala na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Rio Branco, no Acre. A chefe da fiscalização, vendo a deficiência de Rafael entrar antes dele na sala, disse, gaguejando: “Nós obrigamos as empresas a contratarem pessoas como tu, então também temos que te aceitar, mas fica tranquilo que encontraremos uma atividade para ti”.


Aquelas frases brotaram da chefe da fiscalização local sem que ela sequer conseguisse filtrar ou refletir sobre o que estava dizendo. Claro que as palavras falavam de sua insegurança e desconforto com seu primeiro Auditor deficiente visual. No entanto, traziam a perspectiva mais importante: a vontade de adaptar o ambiente para tornar possível o direito ao trabalho do servidor e a sensibilidade de admitir que ela não sabia o que fazer, mas que se esforçaria para descobrir de que forma aquele novo servidor trabalharia de forma produtiva e digna.


Mais de dez anos depois, aqui estou. Trabalho na Superintendência Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, fiscalizando cotas para pessoas com deficiência em empresas que tenham cem ou mais empregados, em cumprimento à famosa Lei de Cotas. E com meus softwares ampliadores, aplicativos leitores de tela e sintetizadores de voz, “enxergo até mais que os colegas nas fiscalizações indiretas”, conforme relatam meus colegas.


Ao lado de outros Auditores apaixonados pela causa, tento mudar aquela triste realidade que me impediu de mostrar na iniciativa privada que, apesar de minha deficiência visual, poderia exercer atividades com dignidade e profissionalismo.


Aliás, sabe que a minha condição até ajuda no trabalho de Auditor? Às vezes a empresa chega na fiscalização com aquela desculpa debaixo do braço de que não pode contratar pessoas com deficiência, que é impossível, mas quando os seus representantes entram na sala da fiscalização para apresentar sua documentação e desculpas, veem que o próprio Auditor está de óculos escuros, fone de ouvido e com uma bengala apoiada na parede. Acabam ficando sem palavras. Como usar a desculpa que haviam ensaiado para dizer ao Auditor, se justamente quem é responsável por fiscalizá-los tem deficiência visual e está atrás do computador trabalhando com competência?


E muita coisa acontece aqui nesta sala em frente à estátua de um marinheiro que ninguém vê e ao lado do Rio Guaíba e seu maravilhoso pôr-do-sol. Histórias lindas de inclusão, de superação, de resgate de cidadania de pessoas que mudaram o rumo de suas vidas quando as empresas, em decorrência da fiscalização, abriram as portas do respeito, da humanização e da inclusão nos seus ambientes de trabalho. Histórias que eram conhecidas pelos seus protagonistas, suas famílias, vizinhos e alguns colegas de trabalho, mas quando chegavam à minha mesa, depois de emocionarem, viravam apenas números nos meus relatórios de inspeção.


Em 2018 percebi que essas histórias reais poderiam empoderar, conscientizar e emocionar mais gente e, assim, até ajudar a mudar as realidades de pessoas não alcançadas diretamente por minhas fiscalizações. Elas passaram a virar relatos escritos no impulso e na emoção do momento, no instante em que os representantes da empresa se retiravam da sala da fiscalização e, depois, compartilhados no meu perfil do Facebook.


Foram justamente os comentários dessas publicações na rede social que me mostraram a importância desse compartilhar e, com muito incentivo, me convenceram a juntar as histórias dessas vidas por trás da cota nesse livro, que escrevo de coração.


Espero que gostem e que ele cumpra seu objetivo. Viva a Lei de Cotas! Viva a Inclusão! Viva as Vidas além da Cota!


Rafael Faria Giguer

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