Acidente de trabalho - Saramago fala da situação do imigrante ilegal


Por: SINAIT
Edição: SINAIT
17/06/2009



O escritor português José Saramago usou sua genialidade literária para descrever, neste feriado de Corpus Christi, um acidente de trabalho ocorrido com trabalhador boliviano em cidade espanhola onde estava em condições de imigrante ilegal. Cruzou histórias na tentativa de sensibilizar os cristãos para o flagelo do trabalhador, ao mesmo tempo em que denunciou a precarização da relação de trabalho no país europeu.


Em resumo (leia a riqueza de detalhes no texto de Saramago, abaixo), numa padaria, o trabalhador teve o braço cortado por máquina e os empregadores o abandonaram a alguns metros do hospital recomendando que não falasse nada da empresa. Além da penúria da situação em si, o descaso e o desprezo ensejaram a impossibilidade de reimplantação do braço, que fora jogado numa lata de lixo.


O fato pode ser transportado para qualquer lugar, hoje em dia. Para a cidade de São Paulo, por exemplo, onde trabalham centenas de latinoamericanos e asiáticos em situação degradante, com documentos retidos e confinados em galpões, doentes e prisioneiros. Em Portugal e na Holanda onde há mulheres estrangeiras submetidas à escravidão das quadrilhas de prostituição. Na Índia, onde crianças são vendidas por migalhas por suas famílias. Na América Central, na Ásia, em qualquer lugar. Milhares de imigrantes, clandestinos, aceitam humilhações e degradação em troca da manutenção da vida. Nem todos conseguem. Imigrantes, nestes tempos de crise, de competitividade, de desemprego, não são bem-vindos – são mão-de-obra barata para empregadores inescrupulosos e vistos como concorrentes pelos trabalhadores nativos.
 
Leia o texto de José Saramago:
 
"
Se te perguntam, não digas nada da empresa"


Reflexões sobre um acidente de trabalho


Epitáfio para Luís de Camões Miguéis »Corpo de Deus
By José Saramago


Também lhe chamam Corpus Christi e é "dia de preceito" para os católicos, além de feriado oficial. Todos os fiéis deverão ir à missa (ser "dia de preceito" a tal obriga) para dar testemunho da presença real e substancial de Cristo na hóstia. E nada de pôr-se com dúvidas sobre a divina presença na pastilha ázima como sucedeu a um sacerdote chamado Pedro de Praga, no século XIII, não seja que se repita o tremebundo milagre de ver a hóstia transformar-se em carne e sangue, não simbólicos, mas autênticos, e ter de levar outra vez a sanguinolenta prova em solene procissão para a catedral de Oviedo, como complacentemente no-lo explica Wikipedia, fonte a que neste difícil transe tive de recorrer. O mundo era interessantíssimo naquele tempo. Hoje, o milagre de recuperar a economia e a banca passa por imprimir milhões de dólares a uma velocidade de vertigem e pô-los a circular, preenchendo assim um vazio com outro vazio, ou, p or palavras menos arriscadas, substituindo a ausência de valor por um valor meramente suposto que só durará o que durar o consenso que o admitiu.


Mas não era da crise que eu queria escrever. Em todo o caso, como já se vai ver, a menção ao Corpo de Deus não foi gratuita nem simples pretexto para fáceis heresias, como costumam ser as minhas, segundo canônicas e abalizadas opiniões. Há alguns dias, no 28 de Maio para ser mais exato, um boliviano de 33 anos, de nome Fraans Rilles, emigrante "sem papéis" e sem contrato, que trabalhava numa padaria em Gandia (Espanha), foi vítima de grave acidente, uma máquina de amassar cortou-lhe o braço esquerdo. É certo que os patrões tiveram a caridade de o levar ao hospital, mas deixaram-no a 200 metros da porta com uma recomendação: "Se te perguntam, não digas nada da empresa". Como seria de esperar, os médicos pediram o braço para tentar reimplantá-lo, mas tiveram de desistir da ideia perante o mau estado em que se encontrava. Tinham-no atirado ao lixo.


Afinal, eu não queria escrever sobre o Corpo de Deus. Como é meu costume, uma coisa levou a outra, mas era do Corpo do Homem que eu pretendia realmente falar, esse corpo que, desde a primeira manhã dos tempos, vem sendo maltratado, torturado, despedaçado, humilhado e ofendido na sua mais elementar dignidade física, um corpo a quem agora foi arrancado um braço e a quem foi ordenado que se calasse para não prejudicar a empresa. Espero que os fiéis que hoje acorreram à missa e leram a notícia no jornal tenham tido um pensamento para a carne sofredora e o sangue derramado deste homem. Não peço que o ponham num altar. Só peço que pensem nele e em tantos como ele. Diz-se que todos somos filhos de Deus. Não é verdade, mas com esta falsidade se consolam muitos. Deus não valeu a Fraans Rilles, vítima da máquina de amassar pão e da crueldade da gente sem escrúpulos que explorava a sua força de trabalho. Ass im vai o mundo e não haverá outro.

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