O Brasil sedia, este ano, de 8 a 10 de outubro, a III Conferência Global contra o Trabalho Infantil, que reunirá representantes de mais de 170 países. Eles deverão prestar contas de como andam as medidas para cumprir o compromisso de erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2016 e todas as formas até 2020, entre outras pautas do evento.
No Brasil, ainda existem mais de três milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos que trabalham, o que corresponde a 7,6% da população nesta faixa etária, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Pnad do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE realizada em 2011.
No ranking nacional, o Estado de Sergipe ocupa o 3º lugar em números absolutos, atrás apenas do Acre e do Distrito Federal, sendo o 6º Estado do Nordeste e o 13º proporcionalmente. Segundo o Auditor-Fiscal do Trabalho Antônio Correa Sobrinho, responsável pelo projeto de fiscalização do trabalho infantil na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Sergipe – SRTE/SE, a criança e o adolescente que trabalham são filhos da pobreza. Estão presentes em todo o país e são encontrados nas mais diversas atividades.
Ele conversou com o Sinait sobre a realidade em seu Estado, sobre a fiscalização e o papel dos Auditores-Fiscais do Trabalho e a situação geral do país. Confira a entrevista de Solange Nunes.
Solange Nunes - Sinait: Há trabalho infantil no Estado de Sergipe?
Antônio Sobrinho: Sim, como em todo o Brasil. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, em 2011, no Brasil, 3.203.273 crianças e adolescentes entre 05 e 17 anos trabalhavam, ou seja, 7,6% da população nessa faixa etária, excluindo o emprego com carteira assinada.
Em Sergipe, 40.812 menores na faixa de 05 a 17 anos (dos 5 aos 15 anos, 19.862, e dos 16 a 17, 20.950), quer dizer, 8,3% das crianças e adolescentes sergipanos estavam, em 2011, envolvidos nalgum tipo de trabalho. Sergipe que em números absolutos de trabalho infantil é superado apenas pelo estado do Acre (28.125) e o Distrito Federal (14.431), e proporcionalmente ocupa a 13ª posição no ranking nacional, e a 6ª no Nordeste. Isto sem considerar as atividades ilícitas, a exploração sexual, por exemplo, que envolvem crianças e adolescentes, cujos dados estatísticos ainda são muito precários.
Qual o segmento econômico em que eles são encontrados?
Tenho a impressão, baseado na minha experiência no combate ao trabalho infantil em Sergipe, que o trabalho precoce realizado em logradouros públicos aqui do estado, como matadouros, lixões e principalmente feiras livres, ocupa boa parte do percentual de crianças e adolescentes laboristas, atividades estas integrantes da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, de que trata o Decreto 6481/2008.
Em razão disto, é que desde 2011 temos inspecionado com regularidade tais logradouros, onde muitas crianças foram identificadas, autos lavrados contra a administração pública municipal, e os casos encaminhados ao Ministério Público do Trabalho, para outras providências.
Em Sergipe há trabalho infantil e de adolescente na cidade e no campo. Mais no campo.
As atividades são as mais variadas: na agropecuária, no comércio formal, no comércio ambulante, em borracharias, lava jatos, pizzarias, restaurantes, lanchonetes, serrarias, olarias e cerâmicas, etc e tal.
Podemos citar, nas atividades agrícolas, como as que mais atraem a mão de obra infantil, as seguintes: o cultivo e o beneficiamento do fumo, colheita da laranja, o feijão, lavagem de batatas, plantio de frutas, cultivo do amendoim, colheita de coco, o milho e o arroz, o cultivo e a fabricação de farinha de mandioca.
Na pecuária, menores também são explorados, sendo que, verificamos que não raro boa parte destes menores por nós flagrados são filhos dos próprios vaqueiros das fazendas. Muitos da pecuária trabalham com os pais em regime de economia familiar.
Matadouros e lixões também são focos de trabalho infantil em Sergipe.
Assamento e quebra de castanha de caju e “descascamento” de camarão são focos tradicionais de trabalho infantil. A fiscalização tem insistido na erradicação deste tipo de trabalho infantil.
A pesca e o beneficiamento do camarão também explora o trabalho infantil em Sergipe.
Nas cidades, quer seja a capital, Aracaju, quer do interior, dezenas e dezenas de crianças são vistas facilmente trabalhando, no comércio ambulante, na rua, autônomo (exemplos: engraxate, vendedor de picolé, venda de CD, guardador de carro, entregador de água mineral, carreto e trabalho em bancas de carne, frutas e verduras de feiras livres).
Empresas, a maioria pequenos negócios, muitas delas clandestinas, ocupam a mão de obra infanto-juvenil: oficinas mecânicas, de moto, de bicicletas, quiosques, bancas de revista, lava jatos, borracharias, restaurantes, pizzarias, lanchonetes, etc.
Quais as questões que envolvem o trabalho infantil? Fatores culturais, econômicos ou sociais?
A Fiscalização do Trabalho, propriamente dita, não atua diretamente nas causas do trabalho infantil, mas, no seu efeito, no trabalho infantil. Exatamente por isso é que temos procurado nos articular com os entes que fazem a rede social de proteção aos menores de idade. Participamos do fórum da Criança, e estamos sempre em contato com as entidades envolvidas, quer seja em encontros, audiências públicas, etc.
Em Sergipe, muitas famílias ainda veem o trabalho infantil como fonte de renda, como algo de mais valia, não obstante a ajuda governamental que recebem. Se ainda em Sergipe muitas crianças e adolescentes trabalham para ajudar em casa e até mesmo para sustentar a família, outras o fazem para consumir coisas – celulares, roupas de marca, tênis, etc.
Mas a porta mais larga para o trabalho precoce é, sem dúvida, a pobreza, e quando a esta se juntam educação escolar sem qualidade e ausência de políticas públicas eficientes, o número de menores envolvidos no labor é sempre grande; e disso o estado de Sergipe, em muitos dos seus municípios, porque o trabalho infantil está nos municípios, parece que ainda não entendeu, ou finge que não.
Por outro lado, o fator econômico é o contraceptivo mais eficiente que existe. Tanto é que bastou o Brasil, nos últimos 15 anos, se desenvolver um pouco mais, para o trabalho infantil sofrer uma redução de mais de 20 pontos percentuais.
Como é a atuação dos Auditores-Fiscais para combater o trabalho infantil?
Combater o trabalho infantil e proteger os direitos dos adolescentes que trabalham faz parte do elenco de competências institucionais de todos os Auditores Fiscais do Trabalho – AFT.
Nas Superintendências Regionais do Trabalho, o coordenador do projeto de fiscalização de combate ao trabalho infantil tem como obrigação realizar o planejamento e executar as ações fiscais, bem como, atuar junto aos fóruns estaduais e municipais de combate ao trabalho infantil e proteção ao adolescente trabalhador, bem como na promoção da integração e do fortalecimento da rede de proteção a crianças e adolescentes, diretamente ou por auditores fiscais do Trabalho designados, por meio da promoção/participação em reuniões, palestras, seminários ou outras atividades, em especial as promovidas pelos demais entes da rede social.
Com base nos dados apresentados na Amostra do IBGE (PNAD 2011) sobre trabalho infantil por atividade econômica, nos municípios sergipanos, temos dirigido nossas ações aos locais e regiões de maior incidência de exploração de trabalho precoce, especialmente em atividades consideradas das Piores Formas de Trabalho Infantil, cuja erradicação se pretende alcançar até 2016, a exemplo de matadouros (no tratamento de vísceras de boi abatido, em serviços de magarefe, lavagem de couro), lixões (reciclagem), feiras livres e mercados hortifrutigranjeiros (frete de mercadorias com a utilização de carros de mão, venda de carne, frutas e verduras), fabricação de farinha de mandioca (descascamento de raiz), colheita de laranjas, camarão (descascamento), assamento e quebra de castanha, e no trabalho desenvolvido por menores em empresas que exploram serviços de borracharia, como também em oficinas mecânicas, lava jatos, restaurantes, lanchonetes, etc.
Quais as estratégias desenvolvidas pelas equipes?
Em todo o Brasil, e Sergipe não é exceção, a Auditoria-Fiscal do Trabalho vem registrando uma diminuição considerável no seu quadro, no mesmo instante em que ver crescer, além das demandas que já lhes são tradicionais, atribuições outras que tem exigido a sua presença, o que tem levado a categoria a racionalizar cada vez mais os seus procedimentos fiscais.
Isto posto, em relação ao trabalho infantil, a impossibilidade material de estarmos em todo o lugar onde uma criança é explorada, inda mais quando sabemos que o trabalho infantil é encontrado em todos os lugares e em boa parte das atividades, priorizamos em nossas ações o combate à exploração de menores onde sua ocorrência e recorrência é maior e que seja em atividade considerada das piores formas de trabalho infantil, a exemplo dos matadouros, lixeiras, feiras livres e mercados. Nestas atividades, onde invariavelmente é o poder público, ou seja, a Prefeitura Municipal, que administra, organiza e controla as atividades nestes logradouros, temos responsabilizado estas entidades, através da lavratura de autos de infração; ao mesmo tempo, temos remetido os casos ao Ministério Público do Trabalho. Tudo isto como forma de fazer produzir efeitos legais e simbólicos capazes de fazer com que o poder público crie novas políticas públicas e aperfeiçoe as já existentes, especialmente as que se referem à assistência social, a educação, a saúde e a cultura dos mais pobres.
Temos realizado regularmente fiscalização de combate ao trabalho infantil em lanchonetes, borracharias, oficinas, lava jatos e distribuidoras de água mineral, dada a grande incidência de trabalho adolescente nestes seguimentos.
Outra estratégia de fiscalização é estreitar cada vez mais a relação com os entes da rede social de proteção aos menores, especialmente aqueles responsáveis pelo controle da legalidade, o Ministério Público do Trabalho e os Conselhos Tutelares.
Com a ajuda destes últimos, neste ano realizamos diligências nas feiras livres dos municípios de Itabaianinha, Simão Dias, Tobias Barreto e Nossa Senhora das Dores.
Continuamos a fiscalizar matadouros, inspeção que realizamos durante a noite.
As ações são sazonais ou frequentes?
O beneficiamento do fumo, por exemplo, só é interessante fazer no mês de setembro em diante, quando começa o processo de fabricação do fumo; momento em que a atividade precisa de mão de obra. Trata-se de atividade insalubre, causadora de sérios prejuízos à saúde dos trabalhadores, que reclamam de náuseas, dores, vomitam, e há registro de trabalhadores que vieram a óbito pela ingestão do líquido que sai da folha do fumo quando em processo de “curação”. É uma atividade em parte desenvolvida em regime de economia familiar, ou na forma de mutirão. Outros mais são explorados, porém.
A citricultura também, apesar da atividade sem perene e a colheita ocorrer durante todo o ano, é junho, julho e agosto que ocorre o clímax da produção. É neste período que atuamos de forma mais constante.
As demais atividades estão sempre sujeitas à presença da Fiscalização, que mensalmente realiza inspeções em cidades previamente escolhidas, priorizando sempre aquelas que possuem mais focos de trabalho infantil em atividades da já mencionada Lista TIP.
Quais os municípios do Estado com maior incidência de trabalho infantil?
Segundo o IBGE (Censo de 2010), em Sergipe, na faixa etária de 10 a 14 anos, proporcionalmente à população do município, o trabalho infantil está mais presente em Canhoba (458, com 93 ocupadas - 20,31%), Moita Bonita (1062, com 200 ocupadas - 18,83%), Poço Verde (2361, com 415 ocupadas - 17,58%), São Miguel do Aleixo (403, com 68 ocupadas - 16,87%) e Poço Redondo (3.854, com 596 – 15,46%). Em números absolutos, Aracaju (46.797, com 1163 crianças ocupadas - 2,49%); Nossa Senhora do Socorro (17.054, com 716 ocupadas); Itabaiana (8758, com 706 ocupadas - 8,06%); Lagarto (9.874, com 573 ocupadas - 5,80%) e Itabaianinha (4.420, com 477 ocupadas - 10,79%).
Atenção: Os índices acima não representam mais a realidade, devendo servir apenas de indicador, uma vez que, segundo o IBGE, ocorreu redução de pouco mais de 14% no índice de ocupação de trabalho infantil no Brasil, nos últimos dois anos.
Ainda levando em consideração o ranking do IBGE, os municípios sergipanos de maior incidência absoluta de trabalho infantil estão localizados na região sertaneja do estado, o que significa dizer que grande parte do contingente de menores envolvido com o trabalho está na zona rural, na agrícola e na pecuária, quase sempre de subsistência.
Itabaianinha, Tobias Barreto, Lagarto, Itabaiana são cidades onde os tradicionais focos de trabalho infantil estão presentes, como lixões, mercados, comércio ambulante, matadouro, laranja, pimenta, fumo, fabricação de farinha, lava jatos, oficinas, borracharias, etc., sem mencionar a agricultura e a pecuária. Regiões onde a presença da fiscalização é uma constante.
Quantas operações aconteceram no Estado em 2012 e no primeiro semestre de 2013?
De 1º de janeiro de 2011 a 5 de agosto de 2013 foram realizadas 752 ações fiscais, em que foram resgatadas 525 crianças e adolescentes, sendo 91 meninas e 434 meninos. Houve ações em praticamente todos os municípios de Sergipe.
Quais são as opções dos jovens resgatados para que não haja reincidência?
Até os 14 anos, o trabalho infantil é proibido no Brasil, pela Constituição Federal, pela Consolidação das Leis do Trabalho e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Não há o que fazer. Afastamos o menor e encaminhamos o caso à rede de proteção, geralmente ao Conselho Tutelar e às Secretarias de Assistência, sendo que, nalguns casos, ao Ministério Público do Trabalho.
Dos 14 aos 16 anos, o adolescente só pode trabalhar na condição de menor aprendiz, devidamente matriculado por empresa em curso ministrado pelo Sistema S (SENAI, SENAC, SENAR ou Entidade Sem Fins Lucrativos criada com este fim), e devidamente contratado por esta.
Nesta faixa de idade, a aprendizagem, infelizmente, tem muito que avançar na democratização do direito do jovem se profissionalizar, pois o Sistema S não atua em todas as localidades e possui critérios de admissão em cursos quase sempre inalcançável pelo menor afastado, geralmente de pouca escolaridade.
Outra coisa que tem prejudicado e até dificultado o processo de erradicação do trabalho infantil é o fato de a legislação não obrigar o empregador a contratar aprendizes na faixa dos 14 aos 16 anos.
Dos 16 aos 18 anos, salvo em atividades insalubres, perigosas, noturna, pelo menos o menor pode ser inserido no mercado de trabalho.
Os Auditores-Fiscais falam com as famílias desses jovens? Qual é o procedimento?
Não é prática da auditoria fiscal este tipo de procedimento, mesmo porque o Ministério do Trabalho tem como obrigação combater o trabalho infantil e proteger o menor adolescente que trabalha. O contato com familiares não raro ocorre no momento da inspeção do trabalho, quando do flagrante do menor em companhia da família.
As causas que induzem o menor a trabalhar precocemente e as formas de prevenir que o acesso a ele ocorra estão sendo trabalhadas a cada dia, e as políticas públicas estão sendo pouco a pouco criadas e/ou aperfeiçoadas, principalmente pelas entidades governamentais, especialmente as que lidam com as questões relacionadas à saúde, a educação e a assistência social das populações mais fragilizadas. Entidades estas que estão em contato permanente com as famílias destes menores.
O Ministério do Trabalho tem consciência de que o trabalho infantil não será eliminado enquanto todas as forças sociais não se juntarem efetivamente para tanto.
As ações têm metas? Como vocês realizam as programações ou definem os setores que devem ser fiscalizados?
Sim, trabalhamos com metas de ações fiscais realizadas. Além do mais, temos a obrigação de atuar junto aos fóruns estaduais e municipais de combate ao trabalho infantil e proteção ao adolescente trabalhador, e promover a integração e o fortalecimento da rede de proteção a crianças e adolescentes diretamente ou por Auditores Fiscais do Trabalho designados, por meio da promoção/participação em reuniões, palestras, seminários ou outras atividades, em especial as promovidas pelos demais entes da rede.
Quais são as dificuldades encontradas no Estado para erradicar o trabalho infantil?
O que falta para erradicarmos o trabalho infantil no Brasil, pelo menos o praticado nas suas piores formas, é a sociedade brasileira executar o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, o qual prevê o fim do trabalho infantil no Brasil até 2020, sendo que nas piores formas, até 2016. Ele, o Plano Nacional, como resultado de longos estudos das múltiplas e complexas causas do trabalho infantil no Brasil, é que conclui que a prevenção e erradicação do trabalho infantil e proteção ao trabalhador adolescente no Brasil não são assumidas como prioridade pela sociedade e pelo poder público; diz que o trabalho infantil é culturalmente aceito e justificável pela sociedade; assevera também que gestores públicos e a iniciativa privada descumprem a lei referente à proibição do trabalho infantil e proteção ao trabalhador adolescente; que existem agentes públicos e conselheiros tutelares pouco capacitados para lidar com as questões do trabalho infantil; que a articulação é insuficiente entre os diversos programas, planos e ações referentes ao combate ao trabalho infantil; que não há obrigação legal às empresas para contratação prioritária de adolescentes de 14 e 18 anos como aprendizes; que concessão de créditos dos agentes públicos à atividade econômica é feita sem a condicionalidade de proibição ao trabalho infantil; que número significativo de famílias em condições de pobreza tem o trabalho infantil como de renda direta ou indireta; como também famílias beneficiárias de bolsas governamentais não retiram suas crianças da situação de trabalho infantil; o trabalho em regime de economia familiar ainda é visto como um valor positivo pelas famílias, principalmente no setor rural; e insuficiente implantação da política nacional de educação integral.
Quais as perspectivas para a III Conferência Global sobre o Trabalho Infantil?
De que haverá mudanças, não tanto no aspecto legal, mas penso que no campo das políticas públicas teremos novidades, até porque esta Conferência chega com uma certa legitimação pelas manifestações populares em favor dos direitos humanos, do exercício da cidadania, dignidade humana, da democracia plena.