O empregador não reconhecia a relação de emprego, por afirmar que apenas intermediava, por meio de um aplicativo, a relação entre o prestador de serviço e o cliente
Assessoria de Comunicação do Sinait, com informações da SRT/SP
Em ação de fiscalização inédita no país, depois de quatro meses de investigações, os Auditores-Fiscais do Trabalho Sérgio Aoki, Rafael Brisque Neiva e Rafael Augusto Vido da Silva autuaram a empresa Loggi Tecnologia, em São Paulo (SP), conhecida como a Uber dos serviços de entrega por motoboys. A equipe verificou pelo menos dezesseis itens em que a empresa estava irregular, relativos, por exemplo, ao reconhecimento do vínculo empregatício dos motociclistas, aos recolhimentos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, e a questões de saúde e segurança do trabalho.
Ao total, estima-se que os valores de FGTS não pagos e das multas trabalhistas cheguem a R$ 2 milhões, referentes às infrações do período de um ano, a partir de uma amostragem de 585 trabalhadores, lotados na capital paulista. A Auditoria-Fiscal do Trabalho expedirá ofícios ao município de São Paulo e à Receita Federal do Brasil, para que sejam apurados eventuais valores de ISS e de encargos sociais não recolhidos.
De acordo com a fiscalização, a empresa ocultava a relação de emprego com os motoboys sob o argumento de que operava um aplicativo para celular que apenas facilitaria a captação de clientes, colocando-se na posição de mera agenciadora entre o motociclista, considerado trabalhador autônomo, e o cliente final. É o que também alegam outras plataformas tecnológicas de serviços sob demanda, que se popularizaram nos últimos anos, no fenômeno conhecido por “uberização” – em referência ao aplicativo Uber.
Por considerar-se apenas uma intermediadora do serviço, a Loggi deixou de pagar uma série de encargos sociais, como contribuição previdenciária, FGTS, férias, 13º salário, GIL-RAT. “Esses tributos podem chegar a 67,18% do valor da folha de pagamento de um empregador, mas a Loggi não pagava nada por tratar o trabalhador como autônomo", explica Sérgio Aoki, que coordenou a fiscalização.
Para os Auditores-Fiscais, o desequilíbrio das contas previdenciárias ficou evidente, pois os recolhimentos eram suportados pelo trabalhador sob regime tributário simplicado. “Esses valores, na perspectiva do Estado, são muito menores do que aqueles que deveriam ser pagos pelo empregador, via folha de pagamento”, afirma a equipe.
Provas da relação empregatícia
No entanto, os Auditores-Fiscais verificaram que a atividade principal da empresa é o próprio serviço de entregas e que o aplicativo seria apenas uma ferramenta para o negócio. “A Loggi vende ao cliente final um serviço de entregas rápidas com preço e produto definidos por ela mesma. Tanto esse cliente final quanto o trabalhador não negociam entre si e somente são conectados após o aval de ambos. O preço é sempre estipulado por meio de uma tabela de precificação, unilateralmente definido pelo sistema do empregador. O processo é idêntico ao de uma empresa de entregas rápidas. Portanto, não há agenciamento”, diz Aoki.
Todo o procedimento de entregas e as ações dos trabalhadores eram monitorados pela Loggi por meio do aplicativo. “Qualquer situação relevante que ocorra durante a corrida deve ser informada à plataforma tecnológica. Em imprevistos, o trabalhador deve entrar em contato com o suporte da própria Loggi, para saber como agir. A rota definida pelo sistema deve ser seguida à risca pelo trabalhador, sob pena de não ser remunerado pela distância que percorreu. Não há dúvidas de que a empresa dirige a prestação dos serviços do motociclista”, aponta Aoki.
Segundo o Auditor-Fiscal, também prova a relação de emprego a tabela de preços imposta pela empresa aos seus trabalhadores. “A tabela de precificação imposta pela Loggi é a maior prova de que os motociclistas não são autônomos, pois é inconcebível que um trabalhador nessa acepção não possa dizer quanto vale seu trabalho. Por outro lado, ao criar tal sistema de remuneração, a empresa está transformando a força-trabalho desses motociclistas em mera mercadoria.”
‘Mão invisível’
Embora os trabalhadores pudessem rejeitar chamadas, a equipe de fiscalização concluiu que o fato não afeta a configuração da relação de emprego.
O coordenador da ação explica que a empresa compensa a liberdade de escolha do trabalhador entre aceitar ou recusar as chamadas criando um sistema competitivo entre os próprios motoboys, já que coloca uma enorme quantidade de motociclistas cadastrados a sua disposição.
De acordo com a investigação, os trabalhadores sabiam onde se encontravam os clientes e se posicionavam próximos a esses lugares, disputando cada um dos chamados. “Locais onde faltam trabalhadores são instantaneamente identificados no monitoramento da plataforma e uma matriz de decisão distribui incentivos em remuneração ou em brindes para corrigir e balancear a força-trabalho com essa demanda. Funcionaria como uma ‘mão invísível’ controlada pela empresa e os trabalhadores estão inseridos nesse processo”, afirma Aoki.
Os Auditores-Fiscais apontam que, para a Loggi, não importa o número de motoboys dispostos a trabalhar, uma vez que é o próprio trabalhador que suporta os custos da motocicleta, do combustível e do tempo ocioso aguardando as chamadas. Esse, por outro lado, precisa auferir remuneração para conseguir sobreviver e para custear toda essa parte operacional do serviço. “Não há dúvida de que esse modelo de negócio é altamente eficiente e possui baixíssimo custo”, pontua o coordenador da ação.
Saúde e segurança
A Loggi também foi autuada por desrespeito às normas de saúde e segurança no trabalho. O que mais chamou atenção foi o fato de a empresa não disponibilizar nenhum local para que os trabalhadores pudessem aguardar as chamadas e manter as motocicletas estacionadas. Assim, os motociclistas permaneciam sem nenhum abrigo, sem fornecimento de água ou acesso a instalações sanitárias.
De acordo com o relato dos Auditores-Fiscais, em todos os locais visitados foram encontrados trabalhadores aguardando os chamados na rua, em alguns casos tomando chuva. “Não é preciso esforço para imaginar os efeitos danosos à saúde, fora a penosidade da situação, se considerarmos que há trabalhadores que permanecem por 10, 12 ou até mais horas diariamente na rua, sem qualquer local de apoio”, afirma a fiscalização. “E nenhum trabalhador quis se identificar, por temer represálias por parte da empresa”, complementa.
A equipe de fiscalização aponta ainda que a empresa adotava incentivos para que os trabalhadores fizessem mais corridas. Constatou-se, por exemplo, que a Loggi premiava os trabalhadores por número de entregas em dias de chuva. “Durante os quatro meses de fiscalização, não houve um dia de chuva em que a empresa não tenha dado esse tipo de premiação. E não há dúvidas de que prêmios do tipo incentivam o aumento de velocidade, com respectivo incremento nos riscos de ocorrerem acidentes do trabalho”, afirma Aoki.
A empresa
A Loggi Tecnologia Ltda deu início a suas operações no final de 2013 com apenas alguns motoboys. De lá para cá, em quatro anos, é hoje líder do mercado, presente em cinco cidades. Possui capital social de R$ 120 milhões.