Por Nilza Murari
O caso do resgate da empregada doméstica Madalena Giordano, em Minas Gerais, continua em evidência na mídia, com a revelação de novos aspectos de sua exploração, por 38 anos, em trabalho análogo ao escravo. O caso ganhou notoriedade após reportagem exibida pelo programa Fantástico, da TV Globo, no dia 20 de dezembro. Nesta reportagem, o Auditor-Fiscal do Trabalho Humberto Camasmie foi entrevistado – veja aqui.
O resgate ocorreu no final de novembro, quando Auditores-Fiscais do Trabalho apuraram denúncia feita ao Ministério Público do Trabalho por um vizinho da família com a qual Madalena morava. Ela colocou bilhetes debaixo das portas dos vizinhos pedindo dinheiro para comprar artigos básicos de higiene, o que despertou a suspeita de que havia algo errado. Relembre aqui.
No domingo seguinte, 27 de dezembro, o Fantástico voltou ao tema, documentando o primeiro Natal de Madalena em liberdade.Outros casos de trabalhadoras domésticas libertadas foram relatados. A Auditora-Fiscal do Trabalho Marinalva Dantas foi ouvida. Veja aqui.
Uma semana mais tarde, no dia 3 de janeiro, mais revelações sobre o caso. Reportagem do UOL Notícias trouxe a informação de que o dinheiro da pensão a que Madalena Giordano tinha direito por ser viúva de um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial foi usado para pagar a faculdade de Medicina de uma das filhas da família que mantinha a trabalhadora em regime análogo ao escravo. O casamento foi arranjado pela família pouco antes da morte do homem, já com a intenção de se apropriar da pensão, hoje um valor superior a R$ 8 mil. O ex-combatente morreu em 2003.
O fato de Madalena Giordano ser mulher e negra dá ainda outros aspectos ao caso, envolvendo a discriminação e o racismo.
Veja reportagem da Rede Brasil Atuale artigo do professor Thiago Amparo, publicado na Folha de São Paulo nesta segunda-feira, que cita a Inspeção do Trabalho.
4-1-2021 – Folha de São Paulo
Escravocratas modernos no poder
Madalena Gordiano, escravizada por 38 anos, é a face de uma abolição inconclusa
Thiago Amparo - Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.
Madalena Gordiano viveu 38 dos seus 47 anos em regime análogo à escravidão em Minas Gerais. Madalena Gordiano não é uma metáfora. É o rosto negro, de carne e osso, de uma abolição, literalmente, inconclusa.
Tão literal quanto o quartinho de empregada que povoa a arquitetura escravocrata do Leblon a Higienópolis.
Madalena, segundo a denúncia oficial, vivia em um quarto minúsculo, sem ventilação, e pedia dinheiro para comprar produtos de higiene por meio de pequenos bilhetes deixados debaixo da porta de vizinhos. Não recebia salário —seus algozes utilizaram a pensão que ela recebia para pagar a faculdade de medicina da filha da família Rigueira. Meritocracia versão escravocrata.
Antes e hoje, o escravocrata mina os dispositivos legais voltados ao combate à escravidão. Bolsonaro disse em novembro de 2020 que “ninguém é a favor de trabalho escravo”, mas que temos que impedir que isso aí que chamamos de trabalho escravo tire a terra de escravocratas. Não é o que diz a Constituição Federal: emenda constitucional de 2014 determina que propriedades rurais onde haja trabalho escravo sejam expropriadas, sem indenização, para reforma agrária e habitação popular.
Denúncias de trabalho análogo à escravidão cresceram 7,63% em 2019. Existe trabalho escravo por que há quem dele se beneficie: seja a família mineira escravocrata, sejam gigantes da carne envolvidas com o “dia do fogo” no Pará em 2019, seja o polo têxtil em Pernambuco ou em São Paulo. Antes e hoje, move-se um país inteiro no lombo negro e indígena e chamam isso de desenvolvimento.
Outra tática dos escravocratas modernos é apelar para a confusão conceitual, quando na verdade a lei é cristalina. Para Bolsonaro, não há problema algum manter trabalhadores em, nas suas palavras, “alojamento mal ventilado, roupa de cama suja, um afastamento não regulamentar entre uma cama e outra”. Em setembro de 2019, Bolsonaro disse que as normas sobre o trabalho escravo “têm que ser adaptadas à evolução”.
Por lei, reduzir alguém à condição análoga à de escravo é crime, significando uma ou mais das seguintes condutas: trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes, restrição da locomoção do trabalhador por meio físico, por dívida, vigilância ostensiva ou retenção de documentos ou objetos pessoais. Em 2017, governo Temer tentou condicionar trabalho escravo à restrição da liberdade, ao arrepio da lei. Coube ao STF barrá-lo.
Os mais sutis escravocratas modernos não chegam a falar as barbaridades de Bolsonaro, mas minam o combate ao trabalho escravo de forma mais sutil: enxugam os recursos para as inspeções de trabalho que possibilitam que outras Madalenas Gordianos sejam encontradas.
Política contra trabalho escravo é complexa, requer prevenção com monitoramento do tráfico de pessoas, requer combate por meio do fortalecimento de inspeções independentes, requer pós-resgate por meio de políticas para os trabalhadores resgatados adquirirem independência socioeconômica, e requer seguir e cortar o dinheiro que alimenta o trabalho escravo, promovendo cadeias produtivas responsáveis e transparentes.
Atestar o caráter persistente de nossa escravidão não é uma figura de linguagem; é a descrição nua, crua e atual de um país onde escravidão ainda persiste e os escravocratas, tampouco uma figura de linguagem, estão no poder, a começar pelo presidente da República. Escravocratas modernos, como os seus antepassados, se valem de argumentos circulares para justificar sua posição, indefensável sob qualquer ótica.