A redução do quadro de Auditores-Fiscais do Trabalho e o fim do Ministério do Trabalho prejudicam o combate ao trabalho escravo
Por Lourdes Marinho, com informações do Observatório da Mineração e do Uol
Levantamento exclusivo do Observatório da Mineração mostra que, desde 2008, 333 trabalhadores foram resgatados em garimpos no Brasil em condições análogas à escravidão. Foram 31 operações que tiveram garimpos como foco nos últimos 13 anos. A extensão desses resgates nunca havia sido revelada antes.
O Pará é o estado campeão com larga margem, com 12 operações. As fiscalizações ocorreram sobretudo na Amazônia e no Nordeste, nos estados do Amazonas, Amapá, Rondônia, Mato Grosso, Bahia, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Em comum, os trabalhadores são encontrados em condições precárias, sem instalações adequadas para alojamento, sem banheiros, consumindo água contaminada, com alimentação improvisada, sem equipamento de proteção, em jornadas exaustivas, sem vínculo formal e, não raro, submetidos a dívidas acumuladas com o dono do garimpo —situações que configuram trabalho análogo à escravidão.
Nos garimpos, é o ouro que lidera a incidência de casos assim, seguido da extração de pedras preciosas — como a ametista —, de caulim, de gesso e de estanho
Fiscalização cresce, mas falta estrutura
Antes quase fora do radar, foi a partir de 2017 que os garimpos passaram a ser foco e as operações aumentaram significativamente. No ano passado, foram realizadas o dobro de operações (10) que em 2017 (5), por exemplo. Três foram realizadas neste ano até o momento.
A mudança foi uma escolha do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, afirma Magno Riga, Auditor-Fiscal do Trabalho e coordenador do Grupo Especial de Fiscalização Móvel - GEFM: "Foi uma decisão institucional. Começamos a olhar com mais atenção para o garimpo e priorizar operações".
Segundo Riga, ao contrário da pecuária e de outras atividades, os garimpos não costumam ser alvo de denúncias de trabalho escravo feita para a Inspeção do Trabalho.
Assim, é preciso estruturar um trabalho de inteligência para buscar as informações, construir os casos, receber relatórios de órgãos ambientais como o Ibama e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e firmar parcerias com a Polícia Federal, que participa das operações.
“Temos muita dificuldade de logística, especialmente nas operações que necessitam de deslocamentos mais longos e complexos, com apoio aéreo. A Polícia Federal tem sido uma grande parceira nesse processo. São áreas de conflito”, explica Riga.
Garimpos têm sofisticado a forma de atuação
Duas operações de resgate de trabalhadores realizadas em 2018 e 2020 aconteceram em garimpos mantidos pela mesma dona, Raimunda Nunes Oliveira. Os 77 trabalhadores resgatados no Pará nessas operações ilustram como o sistema tem funcionado e as dificuldades de evitar que os crimes se repitam.
Nesses casos, detalhados em reportagem da Mongabay, parceira do Observatório, mesmo após a operação de 2018, os donos do garimpo — Raimunda e seus filhos — conseguiram registrar e aprovar requerimentos minerários na Agência Nacional de Mineração. Também entraram com 11 registros de Cadastro Ambiental Rural (CAR) em seus nomes.
O registro de requerimentos na ANM é parte da sofisticação do crime, que incluiu também a criação, em 2020, de uma suposta cooperativa de garimpeiros no Pará, tendo Raimunda como presidente e seus filhos como diretores.
A "cooperativa" seria uma forma de mascarar as condições reais dos trabalhadores e dos próprios garimpos, além de tentar vender a ideia de que os garimpeiros estavam organizados por conta própria.
Em boa parte dos casos, porém, os garimpos nem sequer têm registro formal em pedidos de lavra garimpeira. Muitos estão dentro de terras indígenas e áreas de conservação.
Operações esbarram em falta crônica de servidores
O Grupo Móvel e a PF têm tentado estabelecer um calendário conjunto de operações que esbarra, porém, na pandemia e na falta de servidores. O último grande concurso para Auditor-Fiscal do Trabalho foi em 2010, quando 400 servidores entraram. Atualmente, um concurso da PF prevê a inclusão de 1.500 novos servidores, e outras cerca de 500 podem ser criadas no próximo semestre para a área administrativa do órgão.
Em média, se aposentam entre cem e 150 Auditores do Trabalho todos os anos. Foram mil aposentadorias em dez anos, sem reposição adequada. Hoje, são cerca de 2 mil Auditores do Trabalho para fiscalizar todo o Brasil.
“É um quadro já relativamente envelhecido. Boa parte está em atividade remota ou interna por causa da pandemia. Nos últimos 25 anos, certamente este é o momento em que nós temos menos Auditores-Fiscais do Trabalho em campo”, diz "Magno Riga.
São apenas 17 Auditores-Fiscais divididos em 4 equipes no Grupo Móvel nacional, o mesmo efetivo de uma década atrás.
A situação nas Superintendências Regionais do Trabalho é ainda pior, diz o chefe do GEFM.
Para o SINAIT a falta de Auditores-Fiscais impacta negativamente o combate ao trabalho escravo e as demais demandas da Fiscalização. Um estudo de 2012 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea apontou que o Brasil contemporâneo necessita de um quadro de 8 mil Auditores-Fiscais do Trabalho.
Burocracia atrapalha combate
Além da falta de servidores, os Auditores-Fiscais do Trabalho enfrentam a burocracia. Com a extinção do Ministério do Trabalho pelo atual governo, o Grupo Móvel agora é vinculado ao Ministério da Economia. Essa mudança aumentou a burocracia para que as operações aconteçam, conta Magno Riga.
"Perdemos autonomia. Agora precisamos informar com mais antecedência e uma série de procedimentos ficou mais difícil. Estamos estrangulados", afirma o coordenador do GEFM.
Operações integradas com a PF e órgãos de proteção ao meio ambiente, como Ibama, ICMBio, são fundamentais no caso dos garimpos.
O aumento de operações em garimpos, com todas as dificuldades de logística, recursos, servidores e articulação, não alcança o tamanho real do problema. O número de trabalhadores escravizados em garimpos no Brasil com certeza é muito maior do que a fiscalização consegue identificar.
O garimpo ainda está longe de figurar entre os principais setores com incidência de trabalho escravo, liderados pela pecuária e cana-de-açúcar. Não por falta de casos, mas por ausência de capacidade de fiscalização.
Dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas mostram que, no geral, a maior parte dos trabalhadores resgatados são homens entre 18 e 24 anos, 70% com ensino fundamental incompleto ou analfabetos, quase 60% pardos, pretos ou indígenas. A pandemia e a crise econômica empurram ainda mais pessoas para a precariedade.
Impunidade ameaça combate ao crime
Estudo da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostrou que apenas 4,2% de todos os acusados foram responsabilizados penalmente pelo crime de submeter trabalhadores à escravidão contemporânea no Brasil.
Para o SINAIT, a impunidade encoraja os infratores a cometerem ameaças e ataques contra agentes do Estado o que acaba atrapalhando o combate ao crime. A emblemática Chacina de Unaí é um símbolo de impunidade já que, apesar de condenados, os mandantes não estão presos pelo crime de assassinato de três Auditores-Fiscais do Trabalho e do motorista que os conduzia.
56 mil trabalhadores resgatados em 26 anos
O Grupo Especial de Fiscalização Móvel atua há 26 anos no Brasil e já resgatou, no total, 56 mil trabalhadores nesse período em todo o país.
Em 2020, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), foi lançada uma plataforma para o recebimento de denúncias, o Sistema Ipê.
Depois de resgatados, os trabalhadores recebem direitos mínimos, como o pagamento de verbas rescisórias, seguro-desemprego, acolhimento em centros de assistência social e auxílio para retornar ao local de origem.