Auditores-Fiscais do Trabalho esclarecem que dados divulgados pelo jornal são de ações fiscais de projeto específico para empresas que empregam adolescentes regularmente, protegidos pela legislação trabalhista, mas que estavam em situação de risco pela exposição ao coronavírus
Por Lourdes Marinho
Edição: Nilza Murari
No dia 19 de julho o jornal Metrópoles publicou a matéria Casos de trabalho infantil têm alta de 271% durante a pandemia. Auditores-Fiscais do Trabalho que integram o projeto de combate ao trabalho infantil em vários estados identificaram equívocos na publicação que precisam ser esclarecidos.
Os números divulgados pela reportagem não se tratam de trabalho infantil. Referem-se a ações fiscais realizadas em empresas que empregam adolescentes em situação de trabalho regular e protegido pela legislação trabalhista, mas em atividades consideradas de risco aos adolescentes em razão da exposição ao coronavírus. Essas ações fiscais fazem parte do Projeto Proteção do Adolescente Trabalhador, que tem o objetivo de alcançar condições seguras de trabalho para os adolescentes no contexto da pandemia, para evitar o contágio pelo coronavírus.
“O projeto de fiscalização mencionado na reportagem é excepcional e inédito, formatado especialmente para este período de pandemia. Portanto, incomparável com qualquer atuação fiscal em anos anteriores, principalmente em relação às ações que são feitas regularmente pelos Auditores-Fiscais no combate ao trabalho infantil”, explica o presidente do SINAIT, Carlos Silva.
“Os adolescentes e crianças que estão no trabalho infantil ‘clássico’, em situação de violação de direitos, vulnerabilidades, exploração da mão de obra, etc, não foram alcançados nesse projeto”, reforça a Auditora-Fiscal do Trabalho Erika Medina.
Ela explica que os números de fiscalização aos quais a matéria faz referência, como empresas, ações fiscais e autos de infração, se referem tão somente aos adolescentes que estavam em situação de trabalho regular e protegido. No entanto, em situação de risco à saúde e ao desenvolvimento físico pela exposição ao coronavírus, por exemplo, por atendimento ao público. “O trabalho desses adolescentes não era trabalho infantil, não era irregular, não era proibido. Foi apenas uma situação atípica de risco à saúde e ao desenvolvimento físico em virtude da pandemia”.
Dessa forma, os números da matéria não representam ações clássicas/tradicionais para erradicação do trabalho infantil, compromisso assumido pelo Brasil junto à Organização das Nações Unidas – ONU até 2025 e Meta 8.7 ODS, etc.
Segundo Erika Medina, a comparação entre os dados de trabalho infantil dos meses de março a maio de 2019 e março a maio de 2020, na matéria, precisa excluir os dados deste projeto específico, pois induz ao erro, comparando situações de atuação da fiscalização completamente diferentes.
Projeto, trabalho remoto e presencial
O Projeto Proteção do Adolescente Trabalhador, específico para a fiscalização dos trabalhadores adolescentes neste período de pandemia, contempla somente os adolescentes que estão licitamente e regularmente trabalhando em empresas, com Carteira de Trabalho assinada, com todos os direitos trabalhistas garantidos. “É importante destacar que esse projeto da fiscalização não pretende afastar esses adolescentes do trabalho, pois é um trabalho lícito, regular e protegido. O objetivo é tão somente afastar o adolescente das atividades presenciais, em virtude do risco de contaminação pelo coronavírus. Isso quer dizer que o adolescente poderia continuar trabalhando, por exemplo, se pudesse realizar suas atividades em trabalho remoto”, esclarece Medina.
Além do trabalho remoto, a fiscalização sugeriu outras medidas às empresas para o afastamento dos adolescentes das atividades presenciais. “A volta dos adolescentes ao trabalho presencial ficou condicionada às condições seguras de trabalho, o que foi autorizado agora pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – SIT. Em nenhum momento pretendeu a fiscalização que houvesse a ruptura do vínculo de trabalho do adolescente. Apenas se quis garantir a proteção integral da Constituição, evitando o risco de contaminação e propagação do vírus”, afirma Erika.
Adolescentes fiscalizados são trabalhadores formais
Os dados para o planejamento deste projeto de fiscalização foram retirados do eSocial, ou seja, são dados de trabalhadores adolescentes formais. São totalmente diferentes dos dados e análise situacionais que são feitas para o planejamento das ações fiscais de combate ao trabalho infantil tradicional.
As ações fiscais do projeto foram quase todas realizadas de forma indireta, sem a verificação física do local de trabalho, com poucas exceções, como ocorreu em uma rede de supermercados no Espírito Santo, por exemplo – relembre aqui. É, portanto, completamente diferente das ações de combate ao trabalho infantil clássico, que na sua imensa maioria acontece em situação de rua, lixões, no trabalho doméstico, economia familiar e em estabelecimentos e vínculos de empregos informais.
Diagnóstico do trabalho infantil
De acordo com os Auditores-Fiscais do Trabalho que atuam há muitos anos no combate ao trabalho infantil, a presença de crianças e adolescentes em trabalho ilegal nas empresas formais no Brasil reduziu muito, estando praticamente extirpado, fruto da reiterada fiscalização. Atualmente, o grande desafio é combater o trabalho infantil nas ruas, lixões, no trabalho doméstico e na economia familiar.
Erika Medina alerta que para se ter um quadro real da situação do trabalho infantil no Brasil, em primeiro lugar, é importante definir o que é trabalho infantil e fazer uma contextualização da situação. Também se faz necessária a construção de uma metodologia para identificação do trabalho infantil na cadeia produtiva das empresas para promover a sua responsabilização.
Em segundo lugar, é fundamental ter o diagnóstico preciso de onde há o trabalho infantil no Brasil hoje, o que pode ser elucidado com dados atualizados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e com o cruzamento de bancos de dados de outros Ministérios. Sobre isso, o SINAIT já se pronunciou em reunião do Fórum Nacional para a Proteção e Erradicação do Trabalho Infantil – FNPETI e asssinou Nota Pública, em conjunto com diversas outras entidades. Dependerá também dos dados do IBGE, segundo Erika Medina, a confirmação ou não de que o trabalho infantil, de fato, aumentou durante a pandemia ou no período pós pandemia.
Ela ressalta que a inferência, na matéria, de que o aumento de fiscalizações significa aumento do trabalho infantil na mesma proporção, não procede. “A expectativa é bastante ruim. Muito provavelmente o trabalho infantil reduziu nas ruas, em virtude do fechamento das atividades econômicas e das escolas, mas pode ter aumentado no ambiente doméstico. No futuro próximo, o aumento da pobreza, como consequência da pandemia, também favorecerá o aumento do trabalho infantil, da mendicância e da exploração sexual infantil”, avalia a Auditora-Fiscal.
Fiscalizações
Dados da Inspeção do Trabalho apontam que das 620 fiscalizações realizadas nos meses de abril e maio de 2020, 590 ocorreram no âmbito do programa “Proteção do Adolescente Trabalhador” e, em todos esses casos, o empregador notificado é detentor de CNPJ.
Em abril, foram sete ações fiscais no programa e 12 ações fiscais típicas de combate ao trabalho infantil. Em maio, foram 583 no Programa e 18 ações fiscais típicas. “Diante da peculiar situação trazida pela pandemia, as fiscalizações têm assumido um papel inicialmente orientador, apenas gerando autos de infração quando o empregador se recusa a aplicar as medidas de proteção necessárias à segurança física e psicológica do adolescente trabalhador”, informa Carlos Silva.
De acordo com o dirigente sindical, “em geral, os empregadores compreendem a necessidade e adotam as medidas de proteção orientadas pela fiscalização. Assim, os índices de regularização têm se mostrado altos e, por isso, poucos são os casos que resultam na lavratura de autos de infração.”
Proteção do Adolescente Trabalhador
Lançado em abril de 2020 pela Divisão de Combate ao Trabalho Infantil, o programa de fiscalização denominado “Proteção do Adolescente Trabalhador” tem como objetivo alcançar condições seguras de trabalho para os adolescentes no contexto da pandemia de Covid-19.
Essa programação considerou os riscos ocupacionais decorrentes da pandemia e sua incompatibilidade com as normas de proteção do adolescente trabalhador, fundadas do parágrafo único do art. 403 da CLT, e, por sua vez, mais rigorosas que as normas de proteção de trabalhadores adultos.
Assim, empresas que contratam adolescentes em funções tradicionalmente lícitas e seguras foram notificadas e orientadas a proceder a adoção de medidas de proteção ao adolescente trabalhador, em especial as trazidas pelas Medidas Provisórias nº 927/2020 e nº 936/2020. Atualmente, a MP 927 não tem mais efeitos, pois perdeu sua validade no dia 19 de julho sem a aprovação do Congresso Nacional. A MP 936 foi aprovada e sancionada, transformando-se na Lei 14.020/2020, publicada no dia 6 de julho.
As medidas protetivas orientadas visam, em última instância, permitir que o adolescente trabalhador fique em sua casa, seja por meio da alteração para o regime de teletrabalho ou por meio das medidas de interrupção ou suspensão contratual como antecipação de férias e feriados, redução proporcional de jornada e salário e suspensão temporária do contrato de trabalho – nestes casos, recebendo o Benefício Emergencial criado pelo governo federal.
A não adoção das medidas notificadas tornaria a condição de trabalho do adolescente trabalhador insegura, violando o parágrafo único, do art. 403, da CLT, e, portanto, enquadrada no conceito de trabalho infantil.
Jornal Metrópoles
Esta matéria foi enviada à jornalista Mayara Oliveira, que assinou a reportagem do jornal Metrópoles.